Cantigas Trovadorescas

Daniela Diana
Daniela Diana
Professora licenciada em Letras

Cantigas trovadorescas é a denominação concedida aos textos poéticos da primeira época medieval e que fizeram parte do movimento literário do trovadorismo.

Em geral, eram músicas cantadas em coro e, por isso, recebem o nome de "cantigas".

As cantigas trovadorescas estão classificadas em dois tipos:

  1. Cantigas líricas: incluem as cantigas de amor e amigo, que estão focadas nos sentimentos e nas emoções.
  2. Cantigas satíricas: incluem as cantigas de escárnio e maldizer, que usam a ironia e o sarcasmo para criticar ou ridicularizar.

Cantigas de Amor

As cantigas de amor surgiram entre os séculos XI e XIII influenciadas pela arte desenvolvida na região da Provença, no sul da França.

A influência do lirismo provençal foi intensificada com a chegada de colonos franceses na Península Ibérica e que foram lutar contra os mouros ligados a Provença. Além disso, destaca-se o intenso comércio entre a França e a região ocidental da Península Ibérica, alcançando o Atlântico Norte.

Nesse contexto, surge o "amor cortês", baseado num amor impossível, onde os homens sofrem de amor, pois desejavam mulheres da corte que geralmente eram casadas com nobres.

Esse conceito é mais intenso na voz dos trovadores da Galiza e Portugal, que não se limitam a imitar, mas a "sofrer de maneira mais dolorida".

Características e exemplos de cantigas de amor

As cantigas de amor são escritas em primeira pessoa do singular (eu). Nelas, o eu poético, ou seja, o sujeito fictício que dá voz à poesia, declara seu amor a uma dama, tendo como pano de fundo o formalismo do ambiente palaciano. É por este motivo que ele se dirige a ela, chamando-a de senhora.

“Cantiga da Ribeirinha” de Paio Soares de Taveirós

No mundo non me sei parelha,
mentre me for' como me vai,
ca ja moiro por vós - e ai!
mia senhor branca e vermelha,
Queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mao dia me levantei,
que vos enton non vi fea!

E, mia senhor, des aquelha
me foi a mí mui mal di'ai!,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d'haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d'alfaia
nunca de vós houve nen hei
valía dũa correa.

Esse tipo de cantiga mostra a servidão amorosa nos mais puros padrões da vassalagem.

Dessa forma, a mulher é vista como um ser inatingível, uma figura idealizada, a quem é dedicado um amor sublime também idealizado.

Cantiga “A dona que eu am’e tenho” de Bernardo de Bonaval

A dona que eu amo e tenho por Senhor
amostra-me-a Deus, se vos en prazer for,
se non dade-me-a morte.

A que tenh'eu por lume d'estes olhos meus
e porque choran sempr(e) amostrade-me-a Deus,
se non dade-me-a morte.

Essa que Vós fezestes melhor parecer
de quantas sei, a Deus, fazede-me-a veer,
se non dade-me-a morte.

A Deus, que me-a fizestes mais amar,
mostrade-me-a algo possa con ela falar,
se non dade-me-a morte.

Essas características justificam a presença de um forte lirismo. Esse é representado pela "coisa d'amor" (o sofrimento amoroso); e "coita", que em galego-português, significa "dor, aflição, desgosto". Para os trovadores, esse sentimento é pior que a morte, e o amor é a única razão de viver.

Cantiga “Ai eu de min, e que será?” de Nuno Fernández

Ai eu de min, e que será?
Que fui tal dona querer ben
a que non ouso dizer ren
de quanto mal me faz haver.
E feze-a Deus parecer
melhor de quantas no mund'ha.

Mais en grave día nací,
se Deus conselho non m'i der;
ca destas coitas qual-xe-quer
m'é min mui grave d'endurar,
como non lh'ousar a falar,
e ela parecer assí,

Ela, que Deus fez por meu mal!
Ca ja lh'eu sempre ben querrei,
e nunca end'atenderei
con que folgu'o meu coraçón,
que foi trist', ha i gran sazón,
polo seu ben, ca non por al.

Cantigas de Amigo

As cantigas de amigo originam-se do sentimento popular e na própria Península Ibérica. Nelas, o eu poético é feminino, no entanto, seus autores são homens.

Essa é a principal característica que as diferencia das cantigas de amor, onde o eu lírico é masculino. Além disso, o ambiente descrito nas cantigas de amigo não é mais a corte, e sim, a zona rural.

Os cenários envolvem mulheres camponesas, característica que reflete a relação dos nobres com as plebeias. Esta é, sem dúvida, uma das principais marcas do patriarcalismo da sociedade portuguesa.

Características e exemplos de cantigas de amigo

As cantigas de amigo são escritas em primeira pessoa (eu) e, geralmente, são apresentadas em forma de diálogo. Isso resulta em um trabalho formal mais apurado em relação às cantigas de amor.

Cantiga “Ai flores, ai flores do verde pino” de D. Dinis

- Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo!
ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi há jurado!
ai Deus, e u é?

-Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu ben vos digo que é san'e vivo.
Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é?

Essas cantigas são a expressão do sentimento feminino. Nesse contexto, a mulher sofre por se ver separada do amigo (que também pode ser o amante ou o namorado). Ela vive angustiada por não saber se o amigo voltará ou não, ou ainda, se a trocará por outra.

Cantiga “Ondas do Mar de Vigo” de Martin Codax

Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo
e ai Deus, se verrá cedo?

Ondas do mar levado,
se vistes meu amado?
e ai Deus, se verrá cedo?

Se vistes meu amigo,
o por que eu sospiro?
e ai Deus, se verrá cedo?

Se vistes meu amado,
o por que hei gram coidado?
e ai Deus, se verrá cedo?

Esse sofrimento é, em geral, denunciado a um amigo que serve de confidente. Os demais personagens que compartilham o sofrimento da mulher são, a mãe, o amigo ou mesmo um elemento da natureza que aparece personificado.

Cantiga “A meu amigo, que eu sempr'amei” de João Garcia

A meu amigo, que eu sempr'amei,
des que o vi, mui máis ca min nen al
foi outra dona veer por meu mal,
mais eu, sandía, quando m'acordei,
non soub'eu al en que me del vengar,
senón chorar quanto m'eu quis chorar.

Mai-lo amei ca min nen outra ren,
des que o vi, e foi m'ora fazer
tan gran pesar que houver'a morrer,
mais eu, sandía, que lhe fiz por én?
Non soub'eu al en que me del vengar,
senón chorar quanto m'eu quis chorar.

Sab'ora Deus que no meu coraçón
nunca ren tiv'eu eno seu logar
e foi-mi ora fazer tan gran pesar,
mais eu, sandía, que lhe fiz entón?
Non soub'eu al en que me del vengar,
senón chorar quanto m'eu quis chorar.

Cantigas de Escárnio

As cantigas de escárnio são cantigas que apresentavam, em geral, uma crítica indireta e irônica. Abaixo, temos um exemplo desse tipo de cantiga:

Cantiga “Ai, dona fea, foste-vos queixar” de João Garcia de Guilhade

Ai dona fea! Foste-vos queixar
Que vos nunca louv'en meu trobar
Mais ora quero fazer un cantar
En que vos loarei toda via;
E vedes como vos quero loar:
Dona fea, velha e sandia!

Ai dona fea! Se Deus mi pardon!
E pois havedes tan gran coraçon
Que vos eu loe en esta razon,
Vos quero já loar toda via;
E vedes qual será a loaçon:
Dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei
En meu trobar, pero muito trobei;
Mais ora já en bom cantar farei
En que vos loarei toda via;
E direi-vos como vos loarei:
Dona fea, velha e sandia!

Note que nas cantigas de escárnio, podemos encontrar expressões ambíguas, ou seja, com duplo sentido.

Cantiga “A la fe, Deus, senón por vossa madre” de Gil Peres Conde

A la fe, Deus, senón por vossa madre,
que é a mui bõa Santa María,
fezera-vos eu pesar, u diría,
pola mia senhor, que mi vós filhastes,
que vissedes vós que mal baratastes,
ca non sei tan muito de vosso padre.

Por que vos eu a vós esto sofresse,
senón por ela, se lhi non pesasse?
Morrera eu, se vos com'hom'amasse
a mía senhor, que mi vós tolhestes.
Se eu voss'era, por que me perdestes?
Non queriades que eu máis valesse?

Dizede-mi ora que ben mi fezestes,
por que eu crea en vós nen vos servia
senón gran tort'endoad'e sobervia,
ca mi teedes mia senhora forçada;
nunca vos eu do vosso filhei nada,
des que fui nado, nen vós non mi o destes.

Faría-m'eu o que nos vós fazedes:
leixar velhas feas, e as fremosas
e mancebas filhá-las por esposas.
Quantas queredes vós, tantas filhades,
e a mí nunca mi nen ũa dades:
assí partides migo quant'havedes.

Nen as servides vós nen as loades,
e van-se vosqu'e, poi-las aló teedes,
vestide-las mui mal e governades,
e metedes-no-las tra-las paredes.

Cantigas de Maldizer

As cantigas de maldizer são canções cuja estrutura comporta críticas mais diretas e grosseiras. Nelas, são usadas termos de baixo calão, como palavrões, pois o intuito é mesmo agredir alguém verbalmente.

Confira, um exemplo desse tipo de cantiga:

Cantiga de “A mim dam preç', e nom é desguisado” de Afonso Anes do Cotom

A mim dam preç', e nom é desguisado,
dos maltalhados, e nom erram i;
Joam Fernandes, o mour', outrossi,
nos maltalhados o vejo contado;
e pero maltalhados semos [n]ós,
s'homem visse Pero da Ponte em cós,
semelhar-lh'-ia moi peor talhado.

Diferente das cantigas de escárnio, esse tipo de cantiga geralmente identifica a pessoa a ser satirizada, por exemplo:

Cantiga “A dona fremosa do Soveral” de Lopo Lias

A dona fremosa de Soveral
ha de mí dinheiros per preit'atal
que veess'a mí, u non houvess'al,
un día talhado a cas de Don Corral;
e é perjurada,
ca non fez en nada
e baratou mal,
ca desta vegada
será penhorad'a
que dobr'o sinal.

Se m'ela crever, cuido-m'eu, dar-lh'-hei
o melhor conselho que hoj'eu sei:
dé-mi meu haver e gracir-lho-hei;
se mi o non der, penhorá-la-hei:
ca mi o ten forçado,
do corp'alongado,
non lho sofrerei;
mais, polo meu grado,
dar-mi-á ben dobrad'o
sinal que lh'eu dei.

Entenda mais sobre a Sátira.

Trovadorismo

O Trovadorismo, também chamado de Primeira Época Medieval, é o período que se estende de 1189 (ou 1198) até 1434.

Ilustração das cantigas trovadorescas

Em Portugal, esse movimento literário tem início com a Canção Ribeirinha, escrita por Paio Soares de Taveirós. Ele termina com a nomeação de Fernão Lopes para o cargo de cronista da Torre do Tombo.

A cultura trovadoresca, surgida entre os séculos XI e XII, reflete bem o momento histórico que caracteriza o período. Nele, temos a Europa cristã e a organização das Cruzadas em direção ao Oriente.

Alguns fatores que merecem destaque na Península Ibérica são:

  • a luta dos cristãos contra os mouros para conquistar o território da Península Ibérica;
  • o poder descentralizado na sociedade feudal, onde os reis e os senhores feudais detinham o poder;
  • o compromisso de fidelidade selado entre os nobres do período feudal, chamado de suserania e vassalagem;
  • o poder espiritual concentrado nas mãos do clero, responsável pelo pensamento teocêntrico (Deus no centro de todas as coisas).

Saiba mais sobre o trovadorismo:

Referências Bibliográficas

Cantigas medievais galego-portuguesas: corpus integral profano (obra completa, 2 vol.). Coord.: Graça Videira Lopes. Colecção Fontes, 2016.

Daniela Diana
Daniela Diana
Licenciada em Letras pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 2008 e Bacharelada em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2014. Amante das letras, artes e culturas, desde 2012 trabalha com produção e gestão de conteúdos on-line.