Literatura Negra: entenda o que é, sua origem e principais autores
A Literatura Negra refere-se a obras literárias cujo tema principal se relaciona à vivência do sujeito negro ou negra, seja como autor ou como personagem.
Este gênero serve como um meio crucial de situar o sujeito negro no mundo, contrastando fortemente com obras históricas de autores brancos que frequentemente perpetuavam preconceitos e estereótipos.
Em vez disso, a Literatura Negra visa quebrar padrões estabelecidos, promover a tomada de consciência e afirmar a autoridade sobre a própria narrativa das vidas negras.
Neste conteúdo você encontra:
- O que é considerado literatura negra
- Principais características e temas abordados
- Origem e principais autores
- A relevância e a importância da literatura negra
O que é considerado Literatura Negra
Para entender o que é considerado literatura negra, é preciso considerar a sua complexidade:
Subjetividade e experiência: é uma literatura intrinsecamente ligada à experiência e subjetividade negra. No contexto brasileiro, isso frequentemente traz à tona a tensão da vida do sujeito negro em uma sociedade culturalmente dominada pela "branquitude", uma dominância enraizada nos processos de colonização e escravidão.
Passagem de objeto a sujeito: segundo Luiza Lobo, a Literatura Negra (ou afro-brasileira) verdadeiramente emerge quando o negro transita de ser meramente um "objeto" da literatura para se tornar seu "sujeito", criando assim sua própria história e visão de mundo. É definida como a escritura de africanos e seus descendentes que assumem ideologicamente a identidade de negros.
"Escrevivência": cunhado por Conceição Evaristo, este conceito captura a essência da Literatura Negra. É uma fusão de "escrever", "viver" e "se ver". Mais do que um jogo de palavras, "escrevivência" representa uma concepção derivada de uma epistemologia negra, oferecendo uma perspectiva multifocal para examinar e analisar meticulosamente os complexos contornos da experiência negra brasileira.
Lugar socioideológico: a produção literária de autores negros e brancos, mesmo ao abordar questões inter-raciais, frequentemente possui vieses diferentes devido à distinta posição socioideológica a partir da qual produzem.
Principais características e temas abordados
A Literatura Negra é caracterizada por seu foco na identidade, luta e crítica social:
Contra os estereótipos e o apagamento: ela desafia ativamente o cânone literário historicamente dominado pela "branquitude". Por muitos anos, a literatura brasileira em grande parte excluiu autores negros, e personagens negros eram frequentemente reduzidos a papéis estereotipados e subservientes (como a Tia Anastácia, na obra de Monteiro Lobato, ou o retrato da negra Irene, no poema de Bandeira.). A própria existência desta categorização (Literatura Negra) revela o apagamento histórico e contínuo da cultura negra.
Irene no Céu
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
— Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Denúncia e crítica social: um tema central é a denúncia de desigualdades sociais, preconceito, racismo, fome e marginalização. Autores como Lima Barreto ofereceram um olhar crítico sobre o preconceito racial, a burocracia estatal e as contradições de seu tempo. A obra de Carolina Maria de Jesus expôs poderosamente a fome, o racismo e a marginalização da perspectiva de uma moradora de favela.
Autorreconhecimento e empoderamento: a Literatura Negra fomenta o autorreconhecimento, a luta e uma postura política que contesta as normas literárias e sociais vigentes. As publicações dos "Cadernos Negros" exemplificam isso, fornecendo uma plataforma para poetas negros e subvertendo a noção de que indivíduos negros, especialmente jovens que entravam no espaço universitário nos anos 1970, não produziam literatura.
Vozes autênticas e experiências diversas: a literatura visa fornecer vozes autênticas para as experiências negras, incluindo as especificidades da vida urbana negra, como visto na obra de Oswaldo Camargo.
Origem e principais autores
Embora o termo "Literatura Negra" tenha se popularizado nos anos 1970, a prática de autores negros escrevendo sobre suas experiências e enfrentando a estigmatização devido à sua raça tem uma história muito mais longa.
Academicamente, o termo surgiu no século XX, ligado ao Renascimento Negro Norte-Americano, que influenciou outras regiões. No entanto, no Brasil, uma Literatura Negra distinta pode ser identificada já no século XIX.
Pioneiros do Século XIX
Machado de Assis (1839-1908): amplamente considerado o maior romancista brasileiro, Machado de Assis está sendo cada vez mais reconhecido pela crítica literária como um importante autor negro, apesar das tentativas históricas de "embranquecer" sua imagem. Suas obras, como "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro", criticaram a hipocrisia da elite burguesa brasileira.
Maria Firmina dos Reis (1825-1917): figura central e ativista contra o racismo, ela é possivelmente a primeira mulher a publicar um romance abolicionista no Brasil e na América Latina. Sua obra, como o trecho de "A escrava", defendeu a luta contra a escravidão.
Trecho do conto “A escrava”
— Admira-me, disse uma senhora, de sentimentos sinceramente abolicionistas; faz-me até pasmar como se possa sentir, e expressar sentimentos escravocratas, no presente século, no século dezenove! A moral religiosa, e a moral cívica aí se erguem, e falam bem alto esmagando a hidra que envenena a família no mais sagrado santuário seu, e desmoraliza, e avilta a nação inteira!
Cruz e Souza (1861-1898): Outro autor significativo do século XIX cuja obra se enquadra nesta definição.
Colaboradores do Século XX
Lima Barreto (1881-1922): considerado um dos fundadores da literatura afro-brasileira, ele trouxe à tona temas que mais tarde se tornariam centrais para o modernismo brasileiro. Seu romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma" é reconhecido por sua visão crítica do preconceito racial e das contradições sociais.
Carolina Maria de Jesus (1914-1977): vivendo em extrema pobreza e com apenas dois anos de escolaridade formal, ela documentou sua dura realidade como catadora de lixo em uma favela através de diários. Sua aclamada obra, "Quarto de Despejo: Diário de uma favelada" (1960), tornou-se um sucesso imediato, denunciando poderosamente a fome, o racismo e a marginalização.
"Os homens ricos iam visitá-los, e ficavam horas e horas ouvindo-o. E saiam dizendo: – foi uma pena não educar este homem. Se ele soubesse ler, ele seria o homem. Que preto inteligente. Se este homem soubesse ler poderia se o nosso Sócrates africano. Mas o Rui Barbosa pôs uma lei no Senado pedindo para incluir os negros na escola porque vai ser difícil uma classe culta, e outra inculta, senão vai gerar confusões, choques ideológicos. O analfabeto vai ser apenas um. Não acertará as observações se for admitido como empregado. A sua cooperação e participação é mínima. Agora se ele for alfabetizado a sua cooperação será a máxima. O Rui Barbosa dizia: que era e é preciso educar e esclarecer os predominadores. Ele, sendo instruído, há de querer instruir os seus compatriotas. Um empregado bem instruído poderá substituir o patrão nos casos de emergências."
Solano Trindade (1908-1974): outro autor-chave do século XX.
A Era dos "Cadernos Negros" (a partir de 1978)
Iniciados em 1978 pelo Movimento Negro Unificado, os "Cadernos Negros" são coletâneas e antologias de poetas negros que continuam a ser publicados até hoje. Eles representam um marco histórico significativo para o autorreconhecimento, a luta e a contestação política.
Cuti (Luiz da Silva, n. 1951): co-fundador dos "Cadernos Negros" e da ONG Quilombhoje Literatura, Cuti é um proeminente intelectual negro contemporâneo.
Oswaldo Camargo (n. 1936): poeta, ficcionista e historiador literário, ele é uma das maiores vozes no debate sobre a Literatura Negra. Sua obra "Carro do Êxito" (1972) é considerada pela crítica como um exemplo seminal de literatura baseada na vida urbana negra.
Conceição Evaristo (n. 1946): uma escritora, professora e intelectual contemporânea altamente influente, ela cunhou o termo "escrevivência". Iniciou sua carreira literária na série "Cadernos Negros" em 1990 e é conhecida por sua produção versátil em poesia, ficção e ensaios, defendendo ativamente a cultura negra.
"O peito de Ana Davenga doía de temor. Todos estavam ali, menos o dela. Os homens rodeavam Ana. E as mulheres, como se estivessem formando pares para uma dança, rodeavam seus companheiros, parando atrás de seu homem certo. Ana olhou todos e não percebeu tristeza alguma. O que seria aquilo? Estariam guardando uma dor profunda e apenas mascarando o sofrimento para que ela não sofresse? Seria alguma brincadeira de Davenga? Ele estaria escondido por ali? Não!"
Conheça mais sobre Conceição Evaristo: vida, obra e importância na literatura brasileira.
A relevância e a importância da Literatura Negra
A Literatura Negra permite a compreensão profunda das desigualdades e do preconceito que ainda marcam o cotidiano de milhões de pessoas negras, funcionando como um espelho que revela essas mazelas e convida à mudança. Ao trazer à tona realidades muitas vezes silenciadas, a literatura escrita por autores negros denuncia as estruturas discriminatórias que permeiam as relações sociais e desafia o leitor a encarar essas questões de frente.
Mais do que denunciar, a Literatura Negra também atua como uma força de resistência ao questionar e desconstruir o cânone literário tradicionalmente dominado por vozes brancas. Nesse sentido, ela cumpre um papel de contranarrativa, dando visibilidade às vivências, subjetividades e identidades negras. Ao fazer isso, desloca essas vozes do espaço marginal para o centro do debate cultural e literário, promovendo a diversidade de olhares e a pluralidade de experiências humanas.
Além disso, essa produção literária tem um impacto profundo na construção da identidade e na promoção da consciência entre pessoas negras. Ao verem suas realidades, dores e conquistas refletidas nas páginas dos livros, leitores negros se reconhecem e se fortalecem.
Outro aspecto importante é o papel da Literatura Negra na reinterpretação da história literária. Autores como Machado de Assis, por exemplo, vêm sendo resgatados sob novas lentes que contestam o apagamento de suas origens negras. Esse movimento crítico tem contribuído para corrigir distorções históricas e valorizar o legado intelectual de escritores anteriormente negligenciados ou embranquecidos pelo discurso dominante.
Por fim, trata-se de uma literatura viva, que continua se renovando e atuando como forma de resistência e militância. Publicações como os "Cadernos Negros" são exemplos de como essa produção se mantém firme como instrumento de luta política, valorização cultural e afirmação da negritude. Ao documentar vivências e preservar memórias, a Literatura Negra continua a inspirar e empoderar, garantindo que as vozes negras sigam sendo ouvidas, respeitadas e celebradas.
Para praticar: Exercícios sobre literatura negra (com gabarito explicado)
Aprofunde os seus estudos sobre:
Literatura africana: o que é, suas fases e características
Referências Bibliográficas
BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. p. 213-7.
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LUIS, Rodrigo. Literatura Negra: entenda o que é, sua origem e principais autores. Toda Matéria, [s.d.]. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/literatura-negra/. Acesso em: