Exercícios sobre a literatura de Machado de Assis (com gabarito)
Teste seus conhecimentos com os exercícios comentados sobre a literatura de Machado de Assis. Depois, continue estudando sobre o tema.
Questão 1
Texto I
Meu pai, que não me esperava, abraçou-me cheio de ternura e agradecimento. “— Agora é deveras?, disse ele. Posso enfim...?”
Deixei-o nessa reticência, e fui descalçar as botas, que estavam apertadas. Uma vez aliviado, respirei à larga, e deitei-me a fio comprido, enquanto os pés, e todo eu atrás deles, entrávamos numa relativa bem-aventurança. Então considerei que as botas apertadas são uma das maiores venturas da Terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado, desmortifica-os de- pois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro¹ . [...] Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rápido, inefável e incoercível momento de gozo, que sucede a uma dor pungente, a uma preocupação, a um incômodo... Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas.
Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca; foste aí pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta outra margem...
[...]
(Memórias póstumas de Brás Cubas, 2008.)
Texto II
E aplaude-se sempre.
E não é de mim que falo, que eu gosto disto; os outros é que se enfastiam e cansam de tanta barafusta, sempre a mesma... Mas enfim o que digo é que na província não há tal fastio, que esquece a canseira, e que nem o sublime galimatias do ridículo dali se percebe.
Peço aos ilustres puritanos que, á força de sublimado quinhentista, têm conseguido levar a língua à decrepitude para curar de suas enfermidades francesas, peço-lhes que me perdoem o galimatias, porque ele é muito mais português que outra coisa. A célebre oração Pro gallo Mathiae deu origem a esta bela e expressiva palavra, que sim foi procriada em francês, mas hoje precisamos cá muito mais bela que em parte nenhuma.
Volto já da digressão filológica: tornemos à ótica e à catótrica.
Grande coisa é a distância.
[...]
GARRET, Almeida. Viagens na minha terra. [s.l.]: Ediouro, [s.d.].
Embora “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), de Machado de Assis, seja o marco inicial do Realismo no Brasil, e “Viagens na Minha Terra” (1846), de Almeida Garrett, enquadre-se na primeira geração do Romantismo luso, observa-se, nesses romances, grande semelhança estilística. Nos textos I e II, a semelhança pode ser caracterizada como a(o)
a) digressão, que rompe a linearidade narrativa para inserir reflexões e comentários metalinguísticos.
b) descrição objetiva, que detalha fielmente os aspectos externos da linguagem.
c) discurso indireto livre, que mistura falas do narrador com as dos personagens.
d) analeipse, que retoma fatos do passado de forma ordenada e cronológica.
e) pontuação inusual, levando em conta o fato de ambos os autores utilizarem-na como elementos estruturantes.
Nos textos de Machado de Assis e Almeida Garrett percebe-se o uso da digressão como recurso estilístico. Esse recurso interrompe o desenvolvimento linear da narrativa para incluir reflexões pessoais, comentários ao leitor e análises que fogem ao enredo principal.
No trecho de Machado, a descrição das botas apertadas rapidamente se transforma numa reflexão sobre a relação entre dor e prazer na vida, desviando-se da ação direta. De forma semelhante, Garrett afasta-se do tema principal para discorrer sobre a palavra "galimatias" e fazer comentários sobre a língua portuguesa e seus puristas. Essas interrupções não prejudicam a narrativa, mas são características do estilo dos autores, revelando narradores que dialogam com o leitor e ampliam o sentido do texto por meio de reflexões que enriquecem a obra.
Questão 2
… Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas…
– Duas?
– Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira: as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja.
ASSIS, Machado. O espelho.
Levando em conta o aspecto realista da obra de Machado de Assis, o trecho acima e o subtítulo “Esboço de uma nova teoria da alma humana” adotado para o conto em questão, entende-se que a proposta do conto reside em uma concepção
a) factual, expressando crítica ao cientificismo.
b) religiosa, vinculada à formação cristã do Brasil.
c) irônica, ligada à superficiliade do sujeito.
d) romântica, atrelada à alma heroica de cada sujeito.
e) moderna, apresentando vocabulário vanguardista.
A concepção apresentada no conto O espelho, de Machado de Assis, é marcada fortemente pela ironia, característica essencial do estilo realista do autor. Ao propor uma teoria "nova" e metafísica sobre a alma humana, que divide o indivíduo em uma "alma interior" e outra "alma exterior", o narrador adota um tom aparentemente sério, mas recheado de sarcasmo e crítica velada às construções sociais da identidade.
Assim, a ironia se explicita na forma como elementos banais, como um botão de camisa ou um par de botas, são tratados como possíveis constituintes da alma exterior de alguém. A escolha do termo “laranja” para definir metafisicamente o homem também reforça o humor crítico da narrativa. Essa estratégia machadiana serve para questionar a superficialidade com que muitas vezes se constrói a imagem do sujeito, desmontando, com sutileza e engenho, as idealizações típicas da tradição romântica e espiritualista.
Questão 3
Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e com certeza, as magnólias são menos inquietas de que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: – “Cala a boca, besta!” – Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
O trecho, retirado de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), de Machado de Assis, ilustra um dos recursos centrais do estilo do autor, frequentemente associado à crítica social e à construção de uma identidade narrativa marcada por ambiguidade e ironia. Considerando o Realismo machadiano e os elementos presentes no excerto, é correto afirmar que:
a) A rememoração da infância apresenta forte tom memorialista, com destaque para a formação emocional do narrador e sua relação afetiva com os pais.
b) A narrativa assume um caráter psicológico, revelando os traços de culpa do narrador em relação às figuras subalternas com quem conviveu.
c) A idealização do ambiente doméstico e o elogio da figura paterna aproximam o texto de traços herdados do Romantismo tardio.
d) A caracterização do narrador como criança rebelde revela um processo de formação marcado por tensões sociais, mas suavizado por uma visão nostálgica.
e) A ironia e o distanciamento crítico são empregados para revelar o egoísmo e os privilégios da elite escravocrata da época.
O excerto apresenta uma rememoração da infância que, longe de ser nostálgica ou sentimental, revela uma perspectiva cínica e crítica, típica da obra de Machado de Assis. O narrador assume sua crueldade infantil com frieza e sem arrependimento, especialmente em relação ao tratamento dispensado às pessoas escravizadas. Essa atitude, naturalizada pelo contexto social da elite do século XIX, é explorada por meio da ironia e do distanciamento, marcas da escrita machadiana, que convida o leitor a perceber a crítica subjacente ao comportamento hipócrita e violento das classes dominantes.
Assim, o texto escancara, sob um verniz de leveza e sofisticação, a denúncia das estruturas de poder e opressão vigentes.
Questão 4
Além da fusão entre narrador e enunciador e do caráter de memorial, esses romances têm em comum o fato de serem quase como fins em si mesmos; como se seu objetivo, segundo declarações dos próprios autores-narradores, não fosse comunicar, mas resolver questões pessoais.
[...]
CRUZ JUNIOR, Dilson Ferreira da. A Crônica em Machado de Assis: Estratégias e Máscaras de um Fingidor. 2000. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Lingüística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. doi:10.11606/D.8.2001.tde-19062004-141158. Acesso em: 2025-06-09.
O comentário de Cruz Junior a respeito da obra machadiana abarca um de seus romances principais “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Isso acontece porque:
a) o narrador da obra apresenta-se como o próprio Machado, que escreve para dar conta da herança burguesa.
b) o narrador da obra apresenta-se como um defunto, que escreve para matar o tempo na eternidade.
c) o narrador da obra apresenta-se como um burguês, que escreve para criticar a elite social.
d) o narrador da obra apresenta-se como um homem apaixonado, que escreve para expor a traição de sua esposa.
e) o narrador da obra apresenta-se como um autor-defunto, que escreve para tentar recuperar a sua vida.
O comentário de Cruz Junior destaca o caráter introspectivo e subjetivo da narrativa em Memórias Póstumas de Brás Cubas, cuja função não é apenas relatar acontecimentos, mas antes resolver questões pessoais do narrador. No caso, o próprio Brás Cubas, que escreve do além-túmulo, depois de morto. A premissa insólita da obra é central: Brás Cubas se apresenta como um “autor defunto” que, liberto das convenções e vaidades da vida, pode agora narrar suas memórias com liberdade, ironia e distanciamento. A motivação para escrever suas memórias não é deixar um legado ou buscar glória, mas simplesmente "matar o tempo" na eternidade, como ele mesmo declara no prólogo. Essa escolha narrativa subverte expectativas do romance tradicional e marca a originalidade machadiana.
Questão 5
Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstancias. A quem passe a vida na mesma casa de família, com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.
E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.
ASSIS, Machado. Dom Casmurro.
O trecho acima, extraído de Dom Casmurro, de Machado de Assis, apresenta traços importantes da construção do narrador na obra. A partir dessa passagem, é possível afirmar que o narrador:
a) assume uma postura confiável, ao valorizar a memória como fonte segura de reconstrução do passado.
b) apaga sua presença na narrativa, adotando um estilo objetivo e impessoal, típico do realismo clássico.
c) admite as limitações de sua memória e sugere uma relação de cumplicidade com o leitor para preencher possíveis lacunas.
d) adota um ponto de vista onisciente, permitindo conhecer os sentimentos e pensamentos de todas as personagens.
e) denuncia explicitamente as falhas dos livros clássicos, posicionando-se como um autor inovador de estilo romântico.
O trecho revela um narrador subjetivo, reflexivo e consciente da fragilidade da memória, características marcantes de Dom Casmurro. Ele declara não confiar plenamente em suas recordações, comparando-as às lembranças esparsas de quem vive em hospedarias. Além disso, constrói uma relação direta e cúmplice com o leitor, propondo que este o ajude a "preencher as lacunas", o que evidencia a metalinguagem e o caráter ambíguo da narrativa. Essa estratégia é típica do narrador machadiano, que frequentemente joga com a dúvida e desafia a confiança do leitor.
Questão 6
No trecho a seguir, retirado do romance Quincas Borba, de Machado de Assis, o personagem expõe a base da filosofia humanitista, formulada a partir de uma metáfora que sintetiza sua concepção de mundo:
“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, o ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas."
ASSIS, Machado. Quincas Borba.
Com base nesse trecho e considerando a perspectiva do Realismo na literatura machadiana, é correto afirmar que a filosofia do "ao vencedor, as batatas":
a) representa um elogio sutil à meritocracia, ao sugerir que apenas os mais fortes ou aptos merecem prosperar, numa leitura alinhada ao pensamento darwinista da época.
b) sustenta uma crítica indireta à carência de virtudes morais na sociedade, propondo como saída o retorno a valores heroicos e idealistas típicos do Romantismo.
c) evidencia a crítica irônica à racionalização das injustiças sociais, revelando como os discursos de progresso podem mascarar mecanismos de dominação e exclusão.
d) propõe uma visão historicista da luta humana, em que a violência é um mal necessário à superação de obstáculos, conferindo sentido ético à vitória.
e) reflete o pensamento liberal do século XIX, ao naturalizar os processos de acumulação e competição econômica como fundamentos da convivência social.
A doutrina humanitista, apresentada em Quincas Borba, ironiza as filosofias utilitaristas e cientificistas do século XIX ao levar seus pressupostos às últimas consequências. Ao expor a lógica de que a sobrevivência de um grupo justifica a eliminação do outro, Machado de Assis questiona os valores que sustentam as desigualdades sociais sob o pretexto de progresso, ordem ou racionalidade. Essa crítica é uma marca do Realismo, que desmonta ilusões e denuncia os interesses ocultos por trás de discursos aparentemente neutros. O tom pseudofilosófico do trecho contribui para acentuar a sátira e desvelar a violência simbólica presente nas relações sociais.
Saiba mais sobre o assunto em:
LUIS, Rodrigo. Exercícios sobre a literatura de Machado de Assis (com gabarito). Toda Matéria, [s.d.]. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/exercicios-sobre-a-literatura-de-machado-de-assis-com-gabarito/. Acesso em: