Sátira

Márcia Fernandes
Revisão por Márcia Fernandes
Professora licenciada em Letras

A sátira é uma composição literária, em verso ou prosa, usada para ridicularizar ou ironizar instituições e costumes.

A principal característica da sátira é a ironia e o sarcasmo. Embora nem sempre tenha como objetivo induzir ao riso, geralmente, este estilo literário se aproxima da comédia.

Trata-se, portanto, de uma crítica social feita às pessoas e aos costumes de maneira caricata. Por este motivo, muitas sátiras têm como alvo os políticos, artistas e pessoas de relevância social.

Vale notar que nem sempre ela é literária, sendo também usada no cinema, na música e na televisão. Também como marca da sátira, está a denúncia de assuntos que supostamente seriam tratados de maneira séria.

Embora tenha forte ação no ataque e na desmoralização, nem toda sátira é destrutiva. De maneira cômica, o texto ressalta defeitos e carências morais e de caráter.

É comum a sátira apresentar diálogos com mistura de estilos. O uso de recursos que vão da maledicência à obscenidade são notórios quando representa tipos quase deformados e cheios de vícios.

A sátira utiliza técnicas como a "redução ou diminuição" e a "inflação ou aumento".

Na redução, por exemplo, uma chanceler pode ser chamada de “garota”; e na inflação, um buraco de “cratera”.

Origem e principais representantes

A maioria dos autores diverge sobre a origem da sátira. A intenção de crítica social aparece até mesmo em desenhos da pré-história.

Foi a literatura, contudo, que popularizou o estilo a partir da comédia, já no século V, em Atenas. Entre os autores de maior destaque está o grego Epicarmo, cujo texto cômico ironizava os intelectuais de seu tempo.

O apogeu, contudo, ocorreu em Roma, onde foi aperfeiçoada nos escritos de Gaio Lucílio, com sua poesia moral e recheada de filosofia.

Na Idade Média, o gênero, já consolidado, é marcado por cantigas trovadorescas de escárnio e maldizer. Essas foram produzidas em finais do século XII até meados do século XIV pelos trovadores da Galícia e de Portugal.

Ainda na Idade Média, Monges e burgueses franceses são satirizados pelo escritor francês François Rabelais.

A excelência chega por meio da obra do italiano Giovanni Boccaccio e ganha a marca de Erasmo de Roterdã.

Merece destaque a obra Elogio da Loucura (1509), que apresenta uma forte e intensa sátira aos dogmas religiosos.

A sátira na literatura brasileira

Entre os autores que empregaram o gênero satírico no Brasil, o baiano Gregório de Matos Guerra é, certamente, o de maior destaque.

O autor, que nasceu em 1636, nunca publicou nada durante sua vida. Tudo foi escrito à mão, porque na época em que viveu era proibida a imprensa e a universidade. A edição de livros estava restrita à Lisboa ou Coimbra.

O autor viveu a maior parte da vida em Portugal, mas foi na Bahia que seus dons satíricos foram ressaltados.

Na poesia satírica, Matos revelou suas marcas de preconceito, recebendo o apelido de “Boca do Inferno”. Sua poesia barroca, contudo, também apresentava contornos religiosos e líricos.

Exemplos de sátiras

Epigrama, de Gregório de Matos

Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.

Aos vícios, de Gregório de Matos

Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.

E bem que os descantei bastantemente,
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em pletro diferente.

Já sinto que me inflama e que me inspira
Talía, que anjo é da minha guarda
Des que Apolo mandou que me assistira.

Arda Baiona, e todo o mundo arda,
Que a quem de profissão falta à verdade
Nunca a dominga das verdades tarda.

Nenhum tempo excetua a cristandade
Ao pobre pegureiro do Parnaso
Para falar em sua liberdade

A narração há de igualar ao caso,
E se talvez ao caso não iguala,
Não tenho por poeta o que é Pégaso.

De que pode servir calar quem cala?
Nunca se há de falar o que se sente?!
Sempre se há de sentir o que se fala.

Qual homem pode haver tão paciente,
Que, vendo o triste estado da Bahia,
Não chore, não suspire e não lamente?

Isto faz a discreta fantasia:
Discorre em um e outro desconcerto,
Condena o roubo, increpa a hipocrisia.

O néscio, o ignorante, o inexperto,
Que não eleje o bom, nem mau reprova,
Por tudo passa deslumbrado e incerto.

E quando vê talvez na doce treva
Louvado o bem, e o mal vituperado,
A tudo faz focinho, e nada aprova.

Diz logo prudentaço e repousado:
- Fulano é um satírico, é um louco,
De língua má, de coração danado.

Néscio, se disso entendes nada ou pouco,
Como mofas com riso e algazarras
Musas, que estimo ter, quando as invoco?

Se souberas falar, também falaras,
Também satirizaras, se souberas,
E se foras poeta, poetizaras.

A ignorância dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.

Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não - por não ter dentes.

Quantos há que os telhados têm vidrosos,
e deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?

Uma só natureza nos foi dada;
Não criou Deus os naturais diversos;
Um só Adão criou, e esse de nada.

Todos somos ruins, todos perversos,
Só os distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.

Quem maior a tiver, do que eu ter pude,
Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, chitom, e haja saúde.

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Márcia Fernandes
Revisão por Márcia Fernandes
Professora, produz conteúdos educativos (de língua portuguesa e também relacionados a datas comemorativas) desde 2015. Licenciada em Letras pela Universidade Católica de Santos (habilitação para Ensino Fundamental II e Ensino Médio) e formada no Curso de Magistério (habilitação para Educação Infantil e Ensino Fundamental I).
Daniela Diana
Edição por Daniela Diana
Licenciada em Letras pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 2008 e Bacharelada em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2014. Amante das letras, artes e culturas, desde 2012 trabalha com produção e gestão de conteúdos on-line.