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Literatura africana: o que é, suas fases e características

Rodrigo Luis
Rodrigo Luis
Professor de Português e Literatura

Atualmente, cinco países africanos têm o português como língua oficial: Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Ao analisar a literatura contemporânea produzida nessas nações, é inevitável abordar a marca profunda deixada pela colonização portuguesa — tanto no conteúdo quanto na forma dos textos.

Essa literatura existe, em grande medida, por causa da colonização: foi o domínio português que impôs o idioma que hoje serve de veículo para a produção literária. Além da língua, também foram importadas formas literárias ocidentais, como o romance e o conto, inicialmente alheias às tradições orais locais.

Lusofonia e Literatura: uma relação complexa

A colonização não é apenas pano de fundo, ela estrutura, desafia e alimenta a produção literária africana. Há uma tensão clara entre o uso da língua portuguesa e o desejo de afirmar identidades culturais próprias, especialmente nos períodos pós-independência. No entanto, escrever em português não significa rendição cultural. Ao contrário: muitos escritores africanos contemporâneos transformaram o idioma do colonizador em instrumento de criação autêntica e resistência.

Autores como Mia Couto exemplificam isso ao reinventar o português, mesclando-o com estruturas, vocabulário e ritmos das línguas locais. A língua, nesse contexto, deixa de ser propriedade de Portugal e se torna um espaço de invenção, de expressão africana, de hibridismo cultural. A literatura, portanto, não apenas representa a realidade, mas também a transforma.

Tradição oral e a literatura escrito-oral

Durante o domínio colonial, o acesso à educação formal era severamente limitado, o que restringiu a produção escrita. Em resposta a isso, a tradição oral teve (e ainda tem) um papel essencial — tanto na preservação de histórias e mitos quanto na estrutura poética de muitos textos contemporâneos. A oralidade permanece viva nos ritmos, nos temas e até na construção das frases, fazendo da literatura africana de língua portuguesa algo singular e profundamente enraizado na cultura local.

A poesia, por ser mais acessível e próxima da oralidade, se tornou um dos gêneros mais explorados inicialmente. Mesmo com os altos índices de analfabetismo que ainda afetam países como Angola (33,20%) e Moçambique (53,50%), a riqueza cultural e a força narrativa continuam a florescer — contrariando visões preconceituosas que confundem acesso à escrita com ausência de produção intelectual.

Literatura como construção de identidade

Os escritores desses países exercem um papel essencial: são guardiões da memória coletiva e construtores da identidade nacional. Por meio de seus textos, resgatam vozes marginalizadas, reconstroem mitos locais e registram as dores e as vitórias da história recente.

Mesmo partilhando um passado colonial comum, cada país seguiu trajetórias diferentes, refletidas em suas literaturas — o que gera tanto diversidade quanto afinidades temáticas e formais.

Fases da literatura africana em Língua Portuguesa

Fase da assimilação

Nesta etapa inicial, os escritores buscavam imitar os modelos estéticos europeus. A literatura era produzida com base em moldes ocidentais, muitas vezes sem abordar questões locais ou experiências africanas. A produção literária era, nesse sentido, alienada de sua realidade sociocultural.

Fase da resistência

Com o tempo, surgem obras que rompem com os padrões coloniais. Os autores passam a tratar de temas nacionais, culturais e sociais africanos, como forma de protesto e afirmação. A linguagem, os personagens e os enredos agora refletem a vida real nos territórios colonizados.

Fase de construção da identidade africana

A literatura se volta para a reconstrução simbólica das identidades nacionais. As tradições orais, os valores culturais locais e os mitos africanos ganham destaque. Essa fase geralmente coincide com os períodos de luta e conquista da independência.

Fase de independência literária

Com as independências consolidadas, os autores ganham liberdade temática e formal. A literatura se torna mais individualizada, com experimentações estéticas e temáticas diversas, mas sem abandonar o compromisso com a realidade social e política dos países.

Autores contemporâneos

Paulina Chiziane

Paulina Chiziane emerge como figura pioneira e transformadora, sendo a primeira mulher a lançar um romance publicado em Moçambique. Nascida nos modestos subúrbios de Maputo (antiga Lourenço Marques), ela cresceu em família protestante, onde as línguas Chope e Ronga faziam parte do cotidiano. Posteriormente aprendeu o português em uma escola vinculada a uma missão católica, que lhe abriu as portas para outro universo literário.

Durante os intensos anos de luta pela independência de Moçambique, Paulina desempenhou um papel ativo e comprometido. Contudo, a desilusão política pós-libertação voltou seu olhar para a escrita. Essa mudança também pode ser compreendida diante de um novo governo que adotou políticas restritivas para as mulheres.

Seus primeiros contos, publicados em 1984, marcaram o início de uma carreira que abordaria temas profundos e por vezes controversos da realidade moçambicana. Entre os temas, destacam-se a complexa prática da poligamia e as cicatrizes deixadas pela guerra de libertação e pelo prolongado domínio colonial.

Trecho de Niketche: Uma História de Poligamia

Até na bíblia a mulher não presta. Os santos, nas suas pregações antigas, dizem que a mulher nada vale, a mulher é um animal nutridor de maldade, fonte de todas as discussões, querelas e injustiças. É verdade. Se podemos ser trocadas, vendidas, torturadas, mortas, escravizadas, encurraladas em haréns como gado, é porque não fazemos falta nenhuma. Mas se não fazemos falta nenhuma, por que é que Deus nos colocou no mundo? E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa — sua esposa — intercederia por nós. Através dela pediríamos a bênção de uma vida de harmonia. Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha celestial.

Luandino Vieira

Luandino Vieira é o pseudônimo de José Vieira Mateus da Graça, nascido em maio de 1935. Crescido em Luanda, na Angola, sua juventude foi imersa tanto na riqueza cultural local quanto nas intensas lutas que marcaram o caminho para a independência do país.

Já na juventude, integrou ativamente o MPLA, movimento que se opunha vigorosamente ao colonialismo, e enfrentou, em diversas ocasiões, as repressões brutais da PIDE, a força policial portuguesa. Luandino Vieira sofreu uma condenação severa (14 anos de prisão), sendo transferido em 1964 para um campo de concentração.

Foi nesse ambiente que escreveu várias obras. Em 1965, sua obra "Luuanda" foi agraciada com o Grande Prêmio de Novela pela Sociedade Portuguesa de Escritores. O reconhecimento, infelizmente, foi abafado pela censura do governo português, que extinguiu a sociedade no mesmo ano. Somente em 1972, em Lisboa, sua liberdade foi restabelecida, permitindo que ele começasse a publicar amplamente os escritos que produziu enquanto estava na prisão.

Trecho de Luuanda

"A chuva saiu duas vezes, nessa manhã. Primeiro, um vento raivoso deu berrida nas nuvens todas fazendo-lhes correr do mar para cima do Kuanza. Depois, ao contrário, soprou-lhes do Kuanza para cima da cidade e do Mbengu. Nos quintais e nas portas, as pessoas perguntavam saber se saía chuva mesmo ou se era ainda brincadeira como noutros dias atrasados, as nuvens reuniam para chover mas vinha o vento e enxotava. Vavó Xíxi tinha avisado, é verdade, e na sua sabedoria de mais-velha custava falar mentira. Mas se ouvia só ar quente às cambalhotas com os papéis e folhas e lixo, pondo rolos de poeira pelas ruas. Na confusão, as mulheres adiantavam fechar janelas e portas, meter os monas para dentro da cubata, pois esse vento assim traz azar e doença, são os feiticeiros que lhe põem."

Com a independência de Angola conquistada em 1975, Luandino Vieira retornou à sua terra natal, onde dedicou esforços para organizar e fomentar o novo cenário político-cultural do país. Luandino foi um dos cofundadores da União dos Escritores Angolanos e atuado de forma decisiva em diversas iniciativas artísticas e políticas.

Mia Couto

Mia Couto é o pseudônimo de Antônio Emílio Leite Couto, escritor moçambicano e biólogo, nascido em 1955, em Beira, Moçambique. Ele recebeu o Prêmio Camões (2013) e o Neustadt Prize (2014) e ganhou destaque com a publicação de Terra Sonâmbula (1992).

Couto é descendente de portugueses, mas vive e escreve no contexto africano. Ler a literatura produzida em países africanos de língua portuguesa estimula debates sobre os temas abordados e as condições de produção literária em nações que, após a independência, alcançaram estabilidade política recentemente.

Trecho de Terra Sonâmbula

“— Não gosto de pretos, Kindzu.
Como? Então gosta de quem? Dos brancos?
Também não.
Já sei: gosta de indianos, gosta de sua raça.
Não. Eu gosto de homens que não tem raça.

Estude mais sobre o autor: Mia Couto: poemas, obras e biografia.

Exercícios

Questão 1

Mia Couto em entrevista à ONU News.

“Acho que estamos muito centrados para as coisas do nosso próprio umbigo. Estamos muito virados para nós. Por exemplo, o esforço e o tempo que gastamos por causa do famoso acordo ortográfico. Talvez essa discussão pudesse ser mais produtiva, como apoiar para que o português seja uma língua mais aberta para o mundo e que o mundo esteja aberto para a língua portuguesa, sem nos importarmos muito que o sotaque dominante seja o brasileiro, ou seja o português de Portugal ou seja qualquer outro. O que interessa é que seja a nossa língua portuguesa na sua diversidade, não é?”

ONU News. Não importa o sotaque dominante, mas sim projetar a língua portuguesa em sua diversidade, diz Mia Couto. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2018/11/1646691.

A fala de Mia Couto expressa um sentimento de dubiedade sobre a função e o uso da língua que se reflete em sua obra e na literatura africana de forma geral. Qual é essa tensão?

a) O surgimento, na África, da língua portuguesa como a língua dos colonizadores, que entra em conflito com as linguagens e expressões culturais locais, e cujo uso literário precisa ser ressignificado.

b) O surgimento, na África, da língua portuguesa, cujo uso entra em conflito com a língua do colonizador, e cujo uso literário precisa ser ressignificado.

c) A chegada, na África, da língua portuguesa como a língua dos colonizadores, que portanto é adotada sem maiores conflitos.

d) A completa recusa dos autores africanos de utilizarem a língua portuguesa em suas obras.

e) A superação de qualquer ressalva que já tenha havido por parte dos autores africanos para com a língua portuguesa.

Gabarito explicado

Dado o contexto histórico dos países africanos, utilizar a língua portuguesa para se expressar tem grande significado e já foi controverso, no entanto é o assunto de muita reflexão e reapropriação por parte dos autores africanos.

Questão 2

"E agora perante os dois inesperados visitantes ele repete as suas parecenças com as árvores que renascem cada ano. Tuahir acompanha com dificuldade, a ausência de dentes deforma as palavras do solitário aldeão.

— Sou velho, já assisti muita desgraça. Mas igual como essa nunca eu vi. E abana a cabeça, pesaroso.

— Estás triste, velho?, pergunta-lhe Tuahir.

— Já não fico triste, só cansado.

Era por causa do cansaço que ele não abria os dois olhos de uma só vez. O idoso homem tinha, apesar de tudo, seus pensamentos futuros. Para ele só havia uma maneira de ganhar aquela guerra: era ficar vivo, teimando no mesmo lugar. Não desejava nenhuma felicidade, nem sequer se deliciar com doces lembranças. Lhe bastava sobreviver, restar como um guarda daquela aldeia em ruínas. Agora ele amaldiçoa os que tinham saído dali.

— Satanhocos, hão-de comer poeira!"

COUTO, Mia. Terra sonâmbula.

O presente excerto da Terra sonâmbula de Mia Couto faz referência a que aspecto da literatura africana?

a) A guerra colonial portuguesa, que demonstrou a diferença entre as populações brancas e negras.

b) A tradição oral das populações africanas, em que as histórias da comunidade são transmitidas dos mais velhos para os mais novos.

c) O desejo de convívio pacífico e interdependente entre as diversas etnias de Moçambique.

d) A necessidade de unidade e de unanimidade da tribo, que sempre devem seguir o conselho dos anciões, enquanto líderes da comunidade

e) A melancolia e o existencialismo, como exemplificado pela passagem “Para ele só havia uma maneira de ganhar aquela guerra: era ficar vivo”

Gabarito explicado

Nas culturas dos povos africanos, de modo geral, muito marcadas pela oralidade, o papel das pessoas mais velhas, contadoras de histórias, é central para a comunidade. O trecho acima mostra o conflito das formas tradicionais de conhecimento com aquelas mais novas.

Questão 3

"— Como vês, há erros que se não corrigem. Mas tu querias conhecer a minha história. Pois bem! Em Luanda eu vivia com uma moça, tinha eu vinte e quatro anos. Ela chamava-se Leli, era uma mestiça. Em 1960 começamos a viver juntos. Não casamos por complicações com a família dela. O pai era um comerciante e queria que a filha casasse com um branco. Para adiantar a raça! Mas as coisas arranjavam-se. Por azar, a Leli convenceu-se que gramava um outro. Um dia apareceu-me em casa dizendo que se ia embora. Eu já desconfiava que havia qualquer coisa, pois ela ultimamente andava ausente, fria, sempre irritada. Eu era um miúdo, sem grande experiência. Era a minha primeira mulher, só tinha antes conhecido prostitutas. Uma série delas, é verdade, mas isso não chega. A tática é totalmente diferente, com uma prostituta não há praticamente uma relação de forças que se cria, tudo se faz à base do dinheiro. Salvo se és chulo, aí está bem. Mas eu nunca fora chulo, desconhecia praticamente toda a arte de dominar o outro."

PEPETELA, Mayombe.

Um dos temas de Mayombe, e da literatura africana em língua portuguesa de modo geral, que pode ser extraído do presente excerto é:

a) A tensão sexual e afetiva entre as diversas gerações, em que os costumes das mais velhas, como o casamento, não correspondem com os das mais novas.

b) O racismo legado pelo colonizador português nas relações entre os povos dos territórios colonizados, em que alguns indivíduos tentavam se aproximar o máximo possível do dominador, em contrapartida com alguns que se rebelaram.

c) A paisagem exuberante da África, exemplificada pela ambientação na selva do livro, em contraponto aos novos valores urbanos.

d) A necessidade de se manter laços e não se afastar demasiado de Portugal, como exemplificado pela representação da mestiçagem.

e) Os dramas românticos e domésticos, especialmente como forma de escapismo dos problemas sociais.

Gabarito explicado

Império Colonial Português, para facilitar sua dominação sobre os povos dominados, favorecia aqueles mais próximos do paradigma colonial (como com sua cor da pele, por exemplo) com posições de poder local. Assim se explica o porquê da resistência do casamento de uma mestiça com um negro pelo pai da noiva.

Questão 4

Disse uma vez que o conflito tem também a ver com o facto de o português ser uma língua de dominação — o que a torna uma língua de segregação.

Eu, de vez em quando, dou assim uns berros, uns gritos. Porque nós usamos sobretudo dicionários que são provenientes de Portugal — ainda não produzimos os nossos. E nestes dicionários portugueses há uma supremacia que muitos de nós ainda não tivemos capacidade de ver. Andamos distraídos com o assunto, tal como os próprios portugueses.

"Moçambique nunca conheceu momentos de paz": entrevista a Paulina Chiziane, Luciana Leiderfarb, Expresso.pt. Disponível em: https://expresso.pt/cultura/2023-05-05-Mocambique-nunca-conheceu-momentos-de-paz-entrevista-a-Paulina-Chiziane-18559b03

A resposta de Paulina Chiziane ao comentário expressa uma tensão muito presente na literatura africana. Essa tensão liga-se à

a) felicidade de usar a língua portuguesa.

b) insatisfação com as línguas africanas.

c) falta de autonomia linguística que um povo colonizado tem ao adotar a língua do colonizador.

d) total autonomia linguística dos povos colonizados.

e) indiferença de Paulina a questão.

Gabarito explicado

Ao adotar a língua portuguesa para produzir a sua obra, Paulina precisa simultaneamente lidar com uma língua que é uma herança do passado colonial de seu país.

Estude mais sobre o assunto em:

Contos africanos

Cultura africana

Referências Bibliográficas

FONSECA, Maria; MOREIRA, Terezinha. PANORAMA DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA. Disponível em: . Acesso em: 16 maio. 2025.

Rodrigo Luis
Rodrigo Luis
Professor de Língua Portuguesa e Literatura formado pela Universidade de São Paulo (USP) e graduando na área de Pedagogia (FE-USP). Atua, desde 2017, dentro da sala de aula e na produção de materiais didáticos.